A frase não será exactamente assim. Li-a há uns meses (julgo que ainda não estava grávida) e, no entanto, fiquei com ela retida na mente.
Tanto que poderia dizer sobre estes primeiros 10 dias de Henrique. Podia falar do quanto fico desesperada com o choro dele pela madrugada adentro, ou quando tento mudar-lhe uma fralda e ele esperneia até me deixar louca, ou quando sou brindada com um dos fa-bu-lo-sos xixis em repuxo, ou quando finge que mama... podia falar das vezes que chorei quando ele estava a ser vacinado, e a fazer o teste do pezinho...
("não fizeste nada que eu não tivesse feito quando foi de ti ou do teu irmão, filha! é a nossa cria que está ali...", disse-me a minha mãe), ou do cansaço que sinto ao fim do dia e que me faz entrar de gatas na cama.
Mas, olho para o Henrique, cheiro o Henrique, vivo o Henrique, e as dores passam... finalmente, compreendi que ser Mãe é viver com o coração num sítio completamente diferente; é viver com o coração onde está a minha cria.
E eis que, de repente, tudo muda. Entre a ideia que as nossas vidas mudam depois do nascimento de um filho e a vivência diária vai uma distância medonha.
Sabíamos que íamos sofrer uma mudança radical, mas continuamos a aprender e esforçamos-nos diariamente para lidar com esta miniatura que invadiu o nosso espaço.
Para terem uma ideia: apenas na 5.ª feira consegui sentar-me no sofá um pouco e ver televisão durante pouco mais de uma hora (e mesmo assim adormeci, por instantes, durante uma cena de guerra, sangue e esfaqueamentos na série "Spartacus").
No geral, o Henrique não é um bebé que dê muitos "problemas" durante o dia. O complicado, realmente, são as noites / madrugadas. É um castigo pô-lo a dormir depois de comer.
Chora, chora, chora, engasga-se, soluça, faz beicinho, quando pensamos que finalmente adormeceu, abre a pestana e recomeça a berraria. Os nossos vizinhos devem andar felicíssimos em ouvir os pulmões do meu filhotinho às tantas da madrugada... enquanto que eu ando toda grogue a trocar as horas da madrugada.
E é um fiteiro, senhores!!! As vezes que começa a "miar" até que alguém lhe pegue, para imediatamente parar, são dignas de nota... normalmente, o pai é que é a vítima. E depois é ver o pequenitates a olhar para o tecto como se nada fosse ou a fazer a expressão que apelidei de "tem alguma dignidade, pá!"
Ontem, o pirralho fez 1 semana de vida. E é um gozo olhar para ele e ver o quanto já mudou em apenas alguns dias. Se, na maternidade, estava cheio de manchas na cara e no corpo, agora já está mais "limpo" e a cara começa a arrendondar mais.
E é um gozo maior ainda olhar para ele e perceber que apesar das noites mal-dormidas, de fraldas trocadas em catadupa, de roupinhas trocadas a uma velocidade ainda maior, do choro incessante que se entranha no cérebro (e como se entranha!!!), das dores iniciais da amamentação, do desconforto dos pontos da cesariana... esta coisinha mágica é o meu filho!
E quem se consegue sentir mal quando olha para a sua própria criação?!
As hormonas são uma treta. É muito estrogénio a correr de um lado para o outro, nesta "altura do campeonato".
Daqui a cerca de 24 horas, a correr tudo dentro dos conformes, o Excelentíssimo Senhor Doutor Henrique João Duarte Vilela já terá dado os primeiros berros. E, caramba, já sinto a falta deste barrigão. "i num instante tudo muda!" era, há uns anos, o lema do lançamento de um dos nossos jornais diários. Encontram algo tão mais apropriado a este instante?
Num dia, estou grávida... cheia de "ais" e "uis", com dores nas costas, pés e mãos inchados, com uma barriga que nem sequer permite que cheguemos ao lavatório para lavar as mãos ou ver os pés e que alterou o nosso centro de gravidade.
No segundo seguinte, estou a marcar o dia para "perder" esta barriga com que lido há meses. É quase como implorar para me baterem. Ainda estou grávida e já sinto saudades de estar grávida.
Não vou sentir saudades dos enjoos e das corridas para a casa-de-banho. Não vou sentir saudades de ir fazer xixi todas as meias horas. Não vou sentir saudades de estar com azia. Não vou sentir saudades de não puder comer camarão, por exemplo. Ou presunto. Não vou sentir saudades das noites de insónia. Não vou sentir saudades das faltas de ar. Não vou sentir saudades de parecer um pinguim a andar. Não vou sentir saudades de estar sempre cansada.
Estas são as coisas que não vou sentir a falta.
Mas já sinto falta de ver a barriga a crescer um bocadinho todas as semanas, de sentir umas bolhinhas na barriga e depois uns pés, cotovelos, cabecinha e rabiosque a navegar à volta dela, de ver uns deditos enfiados na boca durante as ecografias, de ouvir as palavras-chave "está tudo bem!", "parece-me tudo normal!", "os resultados estão óptimos!", de ver a barriga a tremer, a remexer-se como se estivesse a acontecer um terramoto no meu organismo, de comprar roupinhas tão pequenas que serviriam à minha boneca Nancy, de ter prioridade nas filas de supermercado, do meu cabelo estar espectacular, de não ter borbulhas na cara, do fascínio que era saber como é que o bebé se desenvolvia semana-a-semana... e por aí fora.
São tantas as coisas que vou sentir a falta. E como.
esta é a 5.ª e última carta que te escrevo. Hoje, lembrei-me de uma música do Sérgio Godinho, procurei a letra e "roubei-lhe" um pouco da poesia:
Enfim duma escolha faz-se um desafio
Enfrenta-se a vida de fio a pavio
Navega-se sem mar, sem vela ou navio
Bebe-se a coragem até dum copo vazio
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Terias de nascer. Sempre foi um dado adquirido. Os bebés nascem. Ponto final. Ciclo da vida e blábláblá...
Mas ter a consciência disso... a data marcada... o dia D à distância de meia dúzia de horas... é uma chapada que a realidade deu aqui aos teus pais, à bruta!
Nasces já na 6.ª feira. Percebes a violência da coisa?!
No domingo, quando o médico puxou da agenda - que na capa tinha escrito qualquer coisa como "Marcação de Cesarianas" - e procurou os dias 14 e 15, percorreu-me um friozinho pelas costas. Procurei a minha própria agenda, enervei-me por segundos por não encontrar a esferográfica e, a tremelicar, escrevi em letras maiúsculas no espaço do dia 15 CESARIANA - ESTAR NO HOSPITAL ÀS 8h30 (6h de jejum).
Depois de quase 9 meses em que foste só meu, depois de muitas queixinhas, depois de muitas caimbras, enjoos, azia, noites de insónia, pontapés nas costelas, idas à casa de banho todas as meias-horas, vou partilhar-te com o Mundo.
Estamos juntos há tanto tempo, já fazemos parte da vida um do outro há tanto tempo que me parece quase surreal que daqui a uns 3 dias estás nos meus braços.
Vamos ter de aprender a conviver juntos. Tenho de perceber quando tens fome, frio, sono, a fralda suja ou quando, simplesmente, me queres ao pé de ti. Isto tudo será tão novo para ti, como para mim e para o teu pai. Nesta fase, seremos todos bebés à procura de qualquer coisa.
Não sei se algum dia vais ler estas patetices de uma grávida com as hormonas todas malucas, mas quero que saibas que existes em mim. Desde sempre. Para sempre.
A enfermeira bem tentou amenizar a coisa "ahhh, a maioria dos bebés não tolera muito bem quando a mãe está a fazer o CTG...", mas o Henrique não quer nem saber da "maioria dos bebés". Ele é ele e 'mai nada.
Quando a contracção começa a mostrar-se, é ver o coração do meu filhotinho a disparar e a chegar aos 190 batimentos e a máquina a disparar sons e luzes vermelhas a jacto. Desta vez, o meu excelso homem estava lá para mostrar ao filho como é que um homem reage: "Vá miúdo, calma!" e ele acalmava.
Não sei se é dos apertos em que ele está, se é da posição em que eu estou (confortável, diga-se de passagem!), se é o tempo que demora o procedimento ou são os sons do alarme... mas aposto todas as minhas fichas nesta última hipótese (na última 4.ª feira, portou-se bem, porque os alarmes estavam na sala de enfermagem e não ao lado dele)
Domingo lá estaremos outra vez.
E as contracções? Elas cá andam... fininhas e atentas!
Hoje é dia 1 de Março. E, para mim, desde Julho de 2012, Março começou por ser sinónimo de bebé, e de Henrique desde Janeiro último.
Março deixou de ser só o mês do nascimento da minha avó, e passa a ter um significado maior do que o caminho que vai daqui às estrelas.
Este ano, se tudo decorrer como penso, vou viver o Dia do Pai e o Dia da Mãe, com verdadeiro conhecimento de causa. Vamos viver estes dias, com o Henrique no colo, com o Henrique nos braços, com o Henrique a chorar ou a dormir.
Este ano, vamos começar a ser o pai e a mãe do Henrique, da mesma maneira que, daqui a uns anos, vamos perder a identidade e passaremos a ser conhecidos nos circuitos escolares apenas como os pais do Henrique.
Março é o mês da Primavera, das flores, do pólen no ar... e, para mim, é o melhor mês do ano.